quarta-feira, 25 de maio de 2016

A vida de um abstêmio

-Isto é cada vez mais raro hoje em dia... Nossa!
-É, é mesmo! - Sorriso amarelo, enchia o copinho de café. A festa rolava animada ao meu lado: a minha direita, os pretendentes, a minha esquerda, os pretendidos, mas, eu não cairei - pra decepção futura dela tinha aliança, apenas tirei porque meu dedo inchara no estranho calor que deu neste inverno.

-Vamos, Carlos, toma uma! - Disse gritando meu amigo Rubens.
-Não, tô tranquilo! - Sentado na mesa, enquanto todos dançavam, eu já tinha gastado meus passos de dança com a moça de antes, então, estava tranquilo. Nisto, olhei pro lado, era Seu Gabriel, ele era hacker, com seus 70 anos continuava com o hábito antigo de ficar mexendo no comunicador ao invés de curtir... Coisas de outras épocas.
-E aí, Seu Gabriel, vendo muita coisa boa na Exanet?
-É... Tá tudo em paz, ao que parece, na bolsa da Namíbia o meu café aumentou, o preço do boi ávaro caiu, um furacão no Japão e... (Ele continuou a falar, nunca levantando a cabeça, algo rude, de velhos hábitos)
Enfim disse:
-Mas, e você, não vai beber? - olhou pra mim pela primeira vez em minutos
-Eu? Não, estou bem, tomei café.
-Ora, vamos, é uma festa! - Disse o homem que estava sentado por duas horas
-Não, tá tudo bem.

-Rubens, Rubens, aonde tu vai, cara?! Eu preciso de grana pro táxi!
-Ah, man, tá aqui! E valeu pelo carro... - disse baixinho, enquanto saia pela porta com a moça de cabelo verde, que tinha dançado com ele.
Olhava em volta, como um campo de guerra abandonado, via a faxineira com suas rodinhas recolhendo as tranqueiras deixadas pelo chão. Tudo muito bucólico, confesso: o som ia diminuindo, calmamente, tudo se tornava mais sóbrio, me senti em casa.
-Hei, você! - me disse com um beijinho na face, a moça que eu dancei algumas vezes - Não se esquece de mim, hein? - Ela era bonita, jovem de rosto macio e bochechas gordinhas, mesmo eu sabendo que metade dele era falso, mas, o cabelo azul não, e ele era belo. Era contadora.
-Vê se você se solta da próxima vez... - Retribui o beijo. Ela sorriu, saiu pela porta
Estava colocando a aliança, esfriara e meu dedo estava mais fino. Quando vi o Seu Gabriel ele estava meio tonto, andando com a ajuda de um andador-inteligente.
-Falou Seu Gabriel! - Ele sorriu com meu cumprimento velho, assentiu com a cabeça
Fechei a porta, últimos convidados da festa da empresa... Finalmente, pude sentar no sofá e não numa cadeira duramente escolhida por ela num leilão de madeiras.
Deu dez, quinze minutos, olhei pro teto. Pensava: "próxima vez", "Rubens não estava bem", "próxima vez", "café da Namíbia", "por quê não? Afinal, ela tava longe fazia quase um século... Além do mais..."
Nisto, toca a campainha:
-Olá, senhor! O senhor me permite? - Um gigante androide-policial vestido de preto, ou seja, se contenção, não de trânsito.
-Olá, o que o senhor gostaria? - Eles sempre preferem polidez, Rubens uma vez não deixou um destes de cor preta entrar em sua casa, ele torceu o braço dele, Rubens tinha erva comprada de um traficante morto, horas antes.
-Gostaríamos de informar que o seu carro foi encontrado em uma cena de crime.
-Como é?
-Ele não estava envolvido, porém, sofreu um acidente próximo, como não era muito longe, preferimos não gastar numa ligação, então vim para cá correndo. O senhor poderia nos acompanhar?
-Claro, claro, vou só pegar meu casaco e... - Um pouco tonto, fui pegar minha jaqueta com 92
-O senhor está bem?
-Sim, claro! - Peguei um copo de whisky e tomei num gole, fazia anos que não bebia. O líquido desceu queimando, minhas engrenagens alimentares ficaram doloridas, álcool não faz bem a elas.
-Ah, apenas uma coisa, senhor... - Disse o androide ao me ver bebendo - Isto não pode danificá-lo? - Senti os olhos metálicos dele lendo todos os meus orgãos.
-Não, sou abstêmio.

Fechei a porta, a faxineira se desligou, fomos ver o que havia.

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Um barco posto na praia

Um barco posto na praia
É assim que ele se vê, é assim que ela se vai
A estrela que brilha última da manhã pra virar novo dia, d'onde o sol nasce
É nisto, que se resume agora: dia que não é mais dia, apenas sol que levanta
Baixa
porém, não para
Porque ainda estamos aqui, ainda estou aqui
Visualizo fotos, vejo imagens, pinturas antigas, nada tenho pra contar aos detetives
Que se tornaram meus amigos e parentes
Apenas que nada existe mais, nem dor
Ela vem numa pontada as vezes, uma agulha, seca e áspera
Algo assim, algo que chamam de saudade
Mentira, ninguém que ter saudade disto
E o barco continua na praia, esperando
E eu aqui, com um nada preenchendo aquele lugar na mesa
No sofá
No cinema
No berço
porém, não para
Os anos passam, a vida passam, hoje tenho Felipa e Manuel, amo todos
Mas, engana-se quem diga: amor é coisa boa
Amamos também as coisas que jamais tivemos, ou aquelas que apenas por um breve
momento, apegamos
Jamais vejo aquele barco no mar novamente, ele pode estragar sua madeira, se dela
Não fosse feita minha memória
Visito o túmulo de meu filho(a) hoje
E pra ti não desejo isto nunca
Virou minha frase cheia de fel, aos desavisados com falso consolo
Pois, aos que entendem, sabem o que dizer:
que aquele barco da praia no dia que nascer não continuou a pescar, não sai.