quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Cartão postal

 Sempre desvio o olhar quando uma pintura me fita, ou foto ou qualquer coisa cria da nossa repetição.
-Qual repetição, kappa?
Aquela que sempre queremos ter, quando fotografamos e pintamos, ou mesmo olhamos putaria na internet ou cartões de banco. É nossa necessidade de guardar coisas, típica da sociedade pós-industrial e blá blá blá blá
-Olhava para ele, mas, não entendia mais o que ele dizia...
Como é? O que está falando Efigênia?
-Não mais sabia se o que sentia era amor, ou simples enjoo de seus papos intelectuais, suas ligações a noite para me pedir desculpas ou minhas carícias por ter xingado o seu trabalho pífio.
... Bem, como continuo em meu devaneio, creio que apenas a Literatura é a real das artes, a maestria da expressão, talvez, com algo do teatro, mas, bem pouco e sem esta celebração capitalista. Quando eu estava indo ao Museu Municipal vi uma bela pintura de Solano do século XV, da Renascença, linda, ao lado, uma escultura à la Duchamp, crítica da sociedade, incrível, fenomenal!
-Mas, você preferiu ir a um museu do que vir receber da volta da casa de meus avós?
 É interessante como a gigantesca magnificência dos temas, das cores, das voltas do pincel buscando a perfeição de uma fotografia - ao qual os jovens hoje tem em suas câmeras portáteis - conversava com aquelas formas incríveis e contestadoras daquele pinico. Representação e crítica! Ao mesmo lado! Isto sim é a busca pelo secreto do ser humano!
-Raul... Parece que não me escuta mais! Meus avós tinham morrido!
E então, atravessando a rua paralela com a central, vi algo que me deixou consternado, um grupo de jovens dançando estas danças novas, danças de negros vindas dos ianques. É detestável como a Cultura Nacional é imbuída destes falsos ídolos, como nós, tupinambás, podemos querer que nosso lugar no Palco das Nações seja respeitado se nem isto, se nem esta capacidade de criar nacionalmente e valorizar, conseguimos? Aonde estão Chico? Betânia? Pedro de Lara? Benito de Paula? Aonde está O BRASIL?
-Vó Maria e Vô José, morreu um na terça e outro na quinta... Enterro no domingo, volta na segunda... Incrível história, parece algo de filme, né?
Interessantemente, a produção da cultura ou da verdadeira erudição, parece, a mim, o verdadeiro caminho para a criação de uma nação de íntegros homens, não mais bandidos, não mais mulheres solteiras com crianças ranhenta pelas ruas, não mais bolas batendo na minha janela. E não vamos falar como nós não podemos nos defender.
-... Olho para sua face, Raul, e apenas vejo um homem velho
... Desculpe, o quê? O que disse Efigênia?
-Você, com suas teorizações, seus sonhos de escritor, seu trabalho medíocre nos Arquivos Públicos, é tudo tão estranho... Aonde está a África? Aonde está a Itália? Aonde estão os sonhos de ir para a Guerra e voltar com uma medalha azul? Não mais entendo você Raul, você ficou velho, perdeu os sonhos
 Apenas sonho com um Brasil melhor, algo como nação! Um projeto maior que minha vida, uma justiça para todos!
 -E aonde está a justiça se nem mesmo você consegue falar comigo?
 Como?
 -... Adeus, Raul, por favor, não atenderei mais nossas ligações
 ... E ela saiu daquela mesa de lanchonete
 E, pela primeira vez em meses eu disse:
 -Efigênia!
 Ela saiu, correndo. Percebi então, e só então, que era apenas uma ilusão de minhas memórias falando comigo e mesmo este Eu Narrativo que estou usando agora, mesmo ele, era apenas uma doce fuga. Incrível como o mundo das idéias preenche os espaços vazios quando estamos vazios, e incrível como o que eu sinto e sentia por ela naqueles tempos era intenso.
 Porém, acabou. Efigênia não existia, ela era apenas meu motor de ideias, que em algum momento entre o ali e o acolá eu suprimi pela vida adulta. Crescer significa deixar estas coisas pra lá, e estou deixando...
 Então, mais que de repente, me veio de súbito uma última ideia:
 -Será que... Talvez
 -...
 -... Olá, meu nome é Raul e eu gostaria, gostaria de pedir algo a você autor deste conto: que eu seja apenas uma ideia e que Efigênia saia daquela foto, amarelada pelo tempo, mas ainda de camisa xadrez mostrada. Por favor, tranque a mim neste texto e liberte ela, como um último ato de amor.
 -...
 Então olhei em volta do meu escritório, e minhas mãos estavam sumindo, na janela, na luz matutina no quintal, eu vi Efigênia. Ela sorriu pra mim, piscou e disse
 -Eu venci?
 Não mais podia responder, o autor me matou, o texto acabou e o ponto final.

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