quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Há última tulipa #Agentes do Caos

MUSIQUETA DA POSTAGEM

 Eram tempos difíceis, havia alguma neve no chão da cidade, a pequena cidade no País dos Moinhos. Pequenos flocos que ao respirar queimavam... Eram cinzas, não neve, agora posso ver com clareza.
 O canto das metralhadoras saboreava o sangue dos guerreiros aos ventos... Os antigos soldados dos castelos murados caíam como goiabas podres aos meus pés... Castroland, antiga terra dos reis fugidos de Holanda agora estava seca e estéril naquela guerra, não mais haviam ali as tulipas, apenas ramos mortos na terra morta... Eu fora poeta na capital, agora era um cabo qualquer, que escapava pelas trincheiras da guerra da Junta. Minha família, a ruiva Miriam, a pequena e loira Melissa e o leãozinho Marcos tinham ficado presos em um trem nas Cavernas de Ponta Grossa... E meus pés me levavam para eles, de alguma forma...
 Minha tropa marchava para lá, nossos aviões bombardiaram tudo... Meu medo de minha esposa jovem e meus gêmeos, qua há três anos iluminaram a minha vida sombria de um casamento falido, estarem todos sobre as pedras em chamas impelia meu corpo na frente da Companhia, a 27ª Companhia Armada Volante –nome bonito pra quem era escolhido para morrer na linha de frente, a bucha de canhão que antes desta maldita guerra tinha um nome e uma casa, agora, apenas uma corrente de metal identificante para ajudar na hora da ida para a lápide.
 Durante a madrugada, lá pelas 3 da manhã, chegamos na cidade... A arquitetura holandesa em chamas, nada mais das fábricas de sapatos ou de baionetas... Eu visitara com meus filhos este lugar, quando eles nasceram, há alguns anos... Só reconheci –no breu iluminado pelas chamas – o chafariz da cidade, seco, como minha esperança a cada passo dado pela fina camada de cinzas que respirava pelas narinas.
 Ouvi um berro... Isto já era de manhã, começavam os raios do sol chato do fim da primavera. Era perto de um estábulo, ou algo do gênero...
 -General!
 Minha posição de sentido foi dada com indiferença pelo homem loiro e magro, era o General Güstaf, o Ceifeiro; seu nome não era há toa, acabara de cortar com uma foice negra que partira de sua mão direita a veia do pescoço de um soldado da Junta... A sombra voltou para a sua mão, perguntei-lhe, com medo e respeito, se havia alguém vivo na Estação ali perto:
 -Não, apenas corpos queimados, a maioria eram de pessoas que estavam indo para Londinus, porém não conseguiram chegar nas fortalezas da Cidade do Norte... Nossos aviões os acertaram em cheio...
 Contive as lágrimas, ele percebeu... Não tinha medo de sua foice sombria, nem das asas de espinhos ou dos olhos escarlates que diziam que aquele demônio com o qual trabalhei – servi – seis meses possuía. Temi por outra coisa, ele parecia que se alimentava de sonhos, de ilusões, vi em seus olhos e me contavam os camaradas; meu corpo de poeta e o que restava de minha crença em espírito estavam ali, na frente de um ser muitíssimo estranho e forte...
 Me mostrou uma marca no braço, era um Corvo, disse:
 -Limpe tudo aqui, as marcas de sangue e pedras soltas... Junte tudo, os pedaços destas construções e sangue destes guerreiros trarão quem quer que queira de volta...
 E eu fui arrumando, ainda insólito era minha ação, sem vontade, ou apenas agindo.
 Cada pedra e cada mancha de sangue limpa, corpo levado para um canto, madeira posta de lado, fui colocando tudo dentro daquela pequena praça em frente ao estábulo... Tirando metralhadoras inimigas, jogando pra lá e pra cá, ia me limpando dos meus medos, da minha preocupação, lembranças boas e ruins de minha família e, finalmente, de minha esperança... O dia estava claro e estava com um sono muito pesado quando terminei, porém, era estranho: ninguém dera minha falta na Companhia, não vieram me procurar. Talvez fosse a névoa que tomava conta do lugar, deixando-o mais soturno, apesar da luz invadir os destroços e o resto de cidade que ainda havia... Ou fosse eu, que de alguma forma me desapareci
 E então caiu um livrinho no meu pé, me abaixei, peguei e tentei olhar d’onde viera, nada havia, apenas uma sombra que se moveu pela fumaça em cima da costrução que limpava, pensei em segui-la, mas antes, dei uma olhada no livro: chamava-se “Odisséia”, li o título e, como estalo, lembrei de minhas aulas de catecismo, quando aprendemos sobre os livros impuros... Este, era um deles, logo, li ele na minha adolescência com as pernas tremulas e medo de que algum professor me pegasse em tal pecado mortal; lá estava ele novamente, aquele pequeno livreto...
 Eu tinha sonhado uma vez, antes de me enveredar por poesias e constituir família, eu havia sonhado realmente... Sonhos e mais sonhos de poder e glória que as carinhas de minhas crianças haviam apagado... De certa forma, algo que tinha gostado...
 Meus olhos, por isto, pelo Desejo, pareciam brilhar de novo... Sorri com os dentes verdes e comecei a andar para alguma direção oposta a guerra, oposta àquele cemitério dos bons soldados doadores...
 -Papai! –Escuto de repente e me volto para as névoas... Lá estão eles, lá esta ela, uma coisa que chamei de família, algo que matou meus desejos carnais, porém, liberou outros –nem melhores, nem piores, apenas, diferentes, talvez...
 Seus olhos sombrios e brilhantes demonstravam que algo estava errado com aqueles seres... No entanto, sabia que era minha família, minha âncora... Dei um passo para frente, olhei-os nos olhos, vi algo que antes não admitia:
 -Me trouxe quem eu queria de volta... – Sussurrei estas palavras para mim mesmo, em um pequeno momento de suor e frio na espinha, olhando para a minha antiga mulher, filho e filha, sombras coloridas em tons de lembrança... Nada como isto: apenas pó.
 Eu me encontrara novamente, dei meia volta e deixei-os lá, apodrecendo... Meu nome agora era Ulisses e estava indo de volta para Minha Casa
 E Minha Casa era Minha Vida.
 Ao qual, pelas sombras da neblina de uma destruída Terra das Tulipas desapareci.
 Minhas últimas flores de jardim, morreram secas sem que eu as tivesse regado.

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