sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Alquimata XVI


Alquimata XVI – Acorde Quarta-Feira



 Passei mais um dia acordado até conseguir dormir. Só que os tambores continuavam, agora, pareciam latidos, estridentes, de algo ou alguém que perdi... E então, vieram os delírios, fui saber depois, havia algo na minha comida que reagiu com a bala que levei, havia algo na minha comida... Havia algo...
 Ali estavam, em um horta enorme, passos pequenos da criança de olhos verdes – que depois ficariam quase castanhos.  Não conseguia passar pelos enormes alfaces sem que os pés ficassem molhados, sem que as sandálias, úmidas, encomodassem a criança... Eu não sei pra onde ela vai, apenas, observo, do alto. Tenho febre, eu não sei, apenas vejo um céu que clareia.
 Lá está, a velha casa de madeira no fundo de um grande quintal... Acho que de uma fazenda, até. Por suas portas de velhas tábuas já apodrecidas em seus pregos e juntas, o toque do menino é suave, na áspera superfície. Apenas lembra das antigas Tias que moravam lá, alemãs, Ameia e Enia, só que seus vestidos de bolinha superam a suas faces, que parecem não habitar mais aquele local. E ele vai e vem pra seu nariz um cheiro estranho, algo que nunca sentira: por trás do cheiro, uma porta
 Pequenas mãozinhas curiosas abrem-na, e um sol está sobre uma mesa redonda, como a da vovó.
       Parecem conversando com  o teto, aqueles moços. Não tenho o número deles, apenas, que havia uns gordos, outros magros, mas, todos de ternos lustrosos e cara pálida. Olhando para o teto, despertando mais ainda a curiosidade do pequeno, ele vê que naquele que está de frente para a porta existe um enorme prato... Ele não viria a saber o nome daquilo por muito tempo; chamavam de Escudo Aldovaz, dos Montemarianos. Mas, ele não se importa, pois, o sagrado para um infantil é outro, é menor, não de importância, mas, de tamanho...
 Observa o copinho. Eram vários pelo chão, só que apenas um, ali, colocado na mesa.
 Verdinho líquido dele, quando o sol batia, via por dentro coisinhas, fumacinhas que se misturavam, formavam pequeninas fadinhas... Pequenas fadinhas de luz do sol. Sua boca salivou, seus dedos correram, sua mão era de alguém que sempre desejou algo e parecia ter encontrado... Então, tomou um bebirrico, no toque primeiro dos lábios, a novidade espanta pelo azedo, no tico trago, abre a vontade de mais, no gole profundo, deixa vício – vício pelo novo, este novo.
 LUZ DO SOL
 Agora, o menino está num campo. Um enorme campo de café decepado, morto. Agora, ouve latidos e tudo parece uma imagem desfocada de uma câmera velha, antiga.
 Lá está ela, a Rainha. Linda e de olhos de conta azul. Lá’stá de onde eu vim...
 Porém, há uma conta que não é de seu olho, é de água e me olha fixamente. Ela grita, minha rainha-mãe:
 - ... –Só que eu não ouço nada, há muito barulho de cães e trovões em volta.
 Só que, por mais que de repente, eles cessam. Param, terminam.
O menino toca a orelha e ela sangra, líquido que escorre parece com outro... O das fadinhas. Só que não brilha, opaca, deixa tudo muito escuro quando se vê e se tem ele nas mãos: o sangue.
 Volvendo sua face para a Rainha, ela o olha, e as contas caem mais rápido. Vestido belo de cetim rosa, mas não tinha aquela mancha que tinha ali... Um líquido está nele; tá machado.
 Mas, acho que a Rainha se cansou, deve estar triste, pela sujeira... Será que foi o menino que fez aquilo?
 Ele caminha com a orelha perdida em uma parte e sente que a chuva se aproxima, há muitos trovões. Olhando para a Rainha que cai, ele vê alguém de terno lustroso, como os dos homens que olhavam para o teto: o rei.
  O menino, a Rainha caída e o Rei. O grande homem vai ao encontro dele, está com algo longo e negro, algo que encosta na cara, na orelha que sangra, do menino e a queima... O sangue para, mas, não é o da Rainha... O Rei olha o menino, olhos negros, cabelos longos e ralos... Que misericórdia há neles? Não sei, não se parecem com os da mãe, do filho, apenas, com os daqueles homens com o Escudo Aldovaz.
 -Sua vaca morreu, meu bezerro... –Diz ele, ouço e lembro de suas palavras – Eu sou teu único caminho: levanta isto e acaba com a traição deste clã!!!
 E aquela coisa brilhante é jogada, no chão. O menino vê a faixa brilhante e a Rainha, caída, olha para ele, sorrindo... Com dentes, cheios de líquido. O que fazer? O Rei ou a Rainha neste xadrez?
 CORRE! Diz o coração dele, por dentro; como o instinto animal. Mas, PEGA, diz o outro, aquele que já sabe que não há como fugir de alguém como o Rei, ele é implacável, ele é alto, ele é... Seu pai, origem de tudo que tu és em ódio e fúria.
  - ... Escolhe teu caminho ou mata a ti mesmo! –Diz o homem com sotaque sulista e os canos de carabina ainda com fumaça nos dentes. Eu nunca mais lembro daquele homem, nem em sonhos, nem em coisas boas, como brincar e jogar videogames... Nada, apenas da fumaça entre os dedos da arma, e a Rainha ali, se arrastando... –Ok, se tu não te decides!
 Vi algo apontar para ela, vi ela morrer, a Rainha.
-NÃO!    - Um dos trovões me diz. Todos os outros se calam. Uma faixa de luz brilhante corta o ar e a carabina solta seu rugido entre os dentes, acertando perto de mim, voo para trás, um metro, que parece quando criança, mais de cinquenta, um oceano inteiro.
 O menino quase desacordado, vê um homem, cabelos por acabar... Ele toca carinhoso a face de sua Rainha, ela lhe diz algo, ao qual ele responde com um olhar para o garoto. Desacordado, vendo fadas no dia estranho e escuro, vê apenas o homem indo em sua direção, ele guarda a faixa de luz e chuta algo – rolando para perto do menino, ele vê o olhar do Rei, agora, sem fumaça nem brilho, apenas mais uma... Mais uma bola, uma bola de carne.
 O sol começa a apagar, seus olhos se levantam e ele vai... Vai e olha o homem quase careca e...
 Cheiro de sopa, isto eu sinto bem. Um mundo de cama, o sol mais uma vez me acorda, mas, agora não há nem tambores e nem cães, há apenas... Meu coração batendo. E os olhos do menino dão de fronte a uma figura imponente, um pouco cinquentona, mas, ainda com ares dourados... Com pratinho na mão, ele me diz:
 -Oi, meu nome é Dimas, pequeno!
 -... Uuuuuaaaa! –Tirando a ramela do olho e esbravejando a energia daquilo que parece um sonho, o menino responde – Olá, moço... Eu sou Onório!
 Então, começo a sentir dores, elas são intensas, duras, meu corpo comprime e escuto novamente um enorme trovão. O menino olha para a janela e vê, ela está lá, como uma faixa de luz, só que agora quem está caído é o velho, em sua cama... Ela, o nome dela? Janes Tempest... Acho que é este, ao menos, assim disserem quando me resgataram... Naquela noite, naquela noite de corridas pelo escuro
 E, nas sombras, tudo acaba, apaga; apenas o suor está como meu companheiro e o sonho volta a ser aquilo que ele me é muitas vezes: tormento de uma realidade que poderia ter apenas sido, não que acontecido.
 Este é ele, eu, Onório Escapuleri. Suado e em uma cama, novamente acordado. O sol bate em minha face, me cega como todas as manhãs, acorde maldito de um dia novo.
 Abre a porta um senhor de terno laranja:
-Vamos! Não temos tempo, achamos um Deles, Mestre!
-Deles?!
-Sim, dos Trolls... Ele está na Catedral!! Vamos!
 Levanto meu corpo, ainda fraco, pelo que aconteceu antes... Por tudo que aconteceu mais antes ainda... Pego as chaves do New Lada, olho o relógio, parece parado, como o tempo de tudo aquilo, aquela maldita missão: pego a Espada dos Luparinos...
 De repente, tudo volta na minha mente, tudo do sonho... Fixando o olhar não na espada, mas, em outra coisa: um pequeno prato de sopa, agora frio, agora sem cheiro bom, apenas uma lembrança de algo que já foi um dia – com fadas, luzes e fumaça.
 Adeus, Dimas.

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